terça-feira, 19 de outubro de 2010

Postal a respigar marés

O mar, é sabido, trás à praia tudo o que encontra pelo caminho. Pedras, lixo, carcaças de animais, conchas, algas, espumas, sapatos, garrafas. Hoje, que passo em comboio lento no paredão, observo um homem que atravessa a névoa das primeiras chuvas, debruçado sobre as manchas indistintas depositadas no areal. Vasculha com um pau, inclinado para conseguir ver o que as ondas trouxeram. Como um caranguejo de carapça em nylon azul escuro estica o braço a recolher um trapo rasgado. O comboio avança e o respigador de marés torna-se um ponto negro no areal.
Apetece-me sair da carruagem e ir ao seu encontro, sentar-me de longe a vê-lo desarear tesouros. Imagino que o faço. Que te dou conta das mãos sujas a revolver salvados de tantos naufrágios. O pássaro morto em voo enquanto procurava escapar ao outono, as penas de gaivota tombadas num asseio de ave a auspiciar escritas e desenhos, a sandália de plástico cor de rosa semi-enterrada, moldada a um pé inexistente, a lata de sumo vazia e amolgada, comprada numa tarde de sol para acompanhar uma sandes de mortadela, o gancho de cabelo perdido depois do beijo, quando num assomo de coragem ele a convidou a vir ver o mar, a garrafa verde de vinho, que idealizo de Rum, pertença do pirata Rackam, o Terrivel,pousada entre as rochas num passeio clandestino pelas margens do Tejo, a espuma a secar em riscos na praia. O comboio caminha terra dentro, a grande velocidade. E o mar vai ficando para trás...