quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Postal quando o comboio passa

Sempre que o comboio passa, assomam à janela. Creio que são os únicos habitantes da casa que se encontra parcialmente em ruinas. À porta alguém fez uma vedação com tapumes e caixotes para não deixar mais ninguém entrar. Modelo da arquitectura de princípios do século XX, a casa tem um recorte fino que os dias e a falta de uso foram esmiuçando em abandono. E é no mirante avançado, de janelas vazadas em arcos de ferradura, que os três sempre aparecem a ver-nos passar. Fazem-me lembrar as Triplettes de Belleville, três que são, ainda que não ladrem ao ronco do comboio em avanço.


Um é preto, esguio, com ar de patriarca, focinho esbranquiçado e olhar vigilante. Outro é um Cocker cor de mel, de idade avançada como o pelo mal encaracolado descobre. O terceiro, mais novo, todo sarapintado a duas cores, preto e branco, como os cavalos índios dos filmes americanos, é o mais irrequieto e nem sempre o vejo aparecer.
Imagino que vivem sozinhos na grande casa como uma trupe de ocupas, espreitando caixotes do lixo, aos restos e a colher gestos espontâneos de afecto pela vizinhança. Pergunto-me porque correm sempre tanto quando o comboio passa e se apressam a exibir as três cabeças esticadas. Mas já lhes surpreendi olhares seduzidos, de quem se imagina maquinista de farda ou revisor a farejar os faltosos. Creio mesmo que o cão preto e esguio prepara todas as manhãs os caninos para picar os bilhetes de quem espera no cais. O sarapintado talvez gostasse de o enganar.
O Cocker velho, estou certa, já só pensa em viajar, sentar-se nos bancos coloridos reservados aos idosos e perder-se, em movimento, na paisagem que todos os dias vê de casa, parado à janela.



quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Um postal de lata na mão

Se eu tivesse uma lata de spray, saía pela linha a grafitar. Escondia-me à passagem dos comboios, em busca da melhor parede e esgalhava palavras em letras grandes para vermos bem, como se fossemos míopes e não tivéssemos óculos a condizer. Não deixava que me apanhassem, de tanto que corria entre murais e, se conseguisse, na gincana das superfícies livres, ainda pintava uma carruagem a dizer “já nada é como nunca foi”, mas apenas na parte debaixo das janelas, porque gostava que os passageiros vissem a paisagem entrecortada com o dizer.

Nas paredes de betão inclinadas sobre os carris, equilibrava-me oblíqua como na garupa de um ginete e escrevia “¡A galopar, a galopar, hasta enterrarlos en el mar!” Para que as palavras e o rio ao fundo, passassem velozes e o comboio em movimento fizesse deles, um só, em contínuo. Gostava de ter uma lata de spray, para poder desenhar caras a ver-nos passar de quando em vez. Franzia o sobrolho a uma, riscava um sorriso noutra, esticava-lhes muito as orelhas como se tentassem ouvir as nossas conversas ao passar.


Chamava dois ou três amigos para nos rirmos a cada desenho e avançarmos ao despique à medida que preenchêssemos os intervalos da visão com frases ouvidas em qualquer lado.

Nas escadas do bairro podia lançar que ” Se houvesse degraus na terra e tivesse anéis o céu, eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia” para depois acelerar passo pelo baldio, antes que dessem conta da malfeitoria. Podia mais adiante escrever-te um postal de parede, a contrastar com os de papel, que poderias ler com um telescópio. Desenhava-lhe um selo imaginado com um spray fininho e agitava a lata linha fora, como se te acenasse em despedida.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Postal em passo de corrida

Hoje já havia banhistas junto aos pneus que o Verão ainda não retirou da praia e escaldam ambos ao sol, nos refegos da sua compleição, espalhados pelo areal.
Os meus olhos fixam-se nas três senhoras de ar antigo, fatos de banho coloridos e enormes chapéus de palha que avançam em passo decidido junto à borda da água. Riem muito na cumplicidade embalada pelo fresco da manhã que aviva as memórias e a língua afiada na crítica do quotidiano. Vejo-as todas as manhãs, ora na praia, ora no paredão, com o passo marchado recomendado pelos médicos da televisão. Sempre que encontram as guardas metálicas de protecção contra qualquer queda para as rochas em baixo, detêm-se todas juntas, de costas para a linha de comboio, e só lhes vejo os chapéus de abas largas e meio troco comprimido pelos anos, a avançar e recuar em flexões esforçadas como se fossem cabos na recruta.

O exercício sai meio torto, mas o que conta é a intenção, já deixaram o sonho de ser ginastas há muito. Uma delas chegou a ser federada mas o casamento trocou-lhe as voltas. Agora viúva e os filhos já criados é craque do varão e incita as amigas ao exercício, reinventando enunciados da juventude.
Retiro da mochila o chapéu de pano florido e alinho a corrida de aquecimento, antes de me juntar às minhas companheiras de manutenção. Saúdam-me festivas ao verem-me chegar. Na bolsa exterior ficou o postal que te escrevi. Espero não me esquecer de o pôr no correio quando regressar a casa.


sexta-feira, 8 de abril de 2011

Postal a dançar no céu

Ninguém percebeu ao certo como tudo aconteceu. O barulho foi estridente, de metal contra metal, como o silvo de um foguete ou giz sobre ardósia. Mas ampliado várias vezes. Mesmo o Roberto lá no alto se mostrou surpreendido. Até porque, até aquela hora, nada naquela manhã decorrera fora do habitual. Levantou-se como sempre fazia com o despertador a tocar às dez para as seis e o galo de um quintal próximo a acompanhar, de forma intermitente. Era noite escura e lá fora uma ou outra luz a quebrava a monotonia da paisagem. Nos rituais de higiene matutina sentiu a água fria activar-lhe os músculos da cara e afeitou a barba, como se talhasse um pedaço de madeira. Sempre tivera aquela compleição seca que lhe reforçava as maças do rosto, a boca larga, as orelhas salientes, que lhe tinha valido em criança a alcunha de Pinóquio.



Acabou de acordar à medida que se aproximava da cidade, de camioneta primeiro, de barco depois, viu o reflexo do sol despontar nas poças do molhe junto ao cais, já em Lisboa. Além do saco onde trazia o termos com as sobras do jantar, um papo-seco com marmelada e um cantil com água, carregava todas as segundas e quartas, uma mochila às costas. Hoje parecia-lhe particularmente pesada, mercê das sapatilhas quase novas compradas por anúncio de jornal em Almada. Cerca de 40 euros e um couro de meter inveja. Embalado, tinha comprado também o respectivo kit de polimento e graxa. Não via a hora de as calçar e deslizar pelo soalho como se tivesse asas nos pés.


Enquanto pendurava o casaco no prego improvisado de cabide projectou mentalmente o momento em que, findo o do dia, despiria o cansaço arrumando os Jeans e a camisa de quadrados no cacifo. Sentar-se-ia nos bancos de madeira corrida para vestir o fato de licra preta como se envergasse calças e casaca. Estava tão concentrado a apertar os atacadores e a experimentar o som das chapinhas com parafusos de solda que nem deu pela entrada dos outros operários no recinto vedado das obras. Enquanto se foram cumprimentando e distribuindo pelos postos de trabalho, tacteou o chão em pequenos soluços a fazer vibrar o metal.
Apertou os botões de punho à medida que arregaçava as mangas à camisa, esticou o peito e começou a subir a longa escada sentindo fluir o ritmo da música em ascensão. Sacudiu as abas de grilo do fraque, como um toureiro agita a capa em desafio ao touro. Olhou de soslaio para baixo na esperança de ver surgir atrás de si Adélia do café Ginja do Tejo, vestida de cerimónia, a esvoaçar na grande saia branca emplumada pelo vento, tal qual a actriz loira dos filmes de sapateado. A melodia envolveu-os e estavam já distantes da terra, suspensos na bolha de vidro da cabine de comando. Sedutor, sorrindo sempre com muitos dentes, guiou-lhe os passos pelas nuvens

Heaven, I'm in heaven,

And my heart beats so that I can hardly speak

And I seem to find the happiness I seek

When we're out together dancing, cheek to cheek

E no exacto momento em que se preparava para fazer Adélia deslizar de costas sobre o seu braço, beijando-lhe ardente o rosto com o olhar e a respiração quente, foi acordado em alvoroço com o degagé da enorme grua sobre a cidade, entrando pela marquise de alumínio do prédio em frente, como se esperasse ser erguida em aplauso pelas gaivotas ali antes poisadas. Detenho-me maravilhada com o acontecido e avanço apressadamente para os correios para não perder a abertura. Consigo enviar-te este postal a tempo, com a cara vermelha do “Roberto manobrador” na ponta da caneta e o olhar incrédulo, de colegas e transeuntes, espalhado no papel e na memória. Enquanto espero a minha vez cruzo os dedos e faço figas na expectativa de ver surgir no placard luminoso dos talões: “Roberto Astaire e Ginger Grua: 10 pontos”!


quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Postal a pisar rosas

Um dos barcos é dos pombos. Distingue-se dos outros pela cor verde-água e pelos tripulantes de duas asas que olham sobranceiros o mar. Juntam-se de tarde para ouvir as conversas dos homens que se sentam entre os destroços das barcaças a jogar cartas ou dominó, a lembrar viagens que nunca fizeram.

São sobretudo pescadores amadores, reformados, gente que mora pelas redondezas e se senta ali a olhar o horizonte, a tecer, entre redes de nylon desusadas, contornos de histórias. Falam de futebol, das desavenças do dia-a-dia, da vida no bairro. Por vezes mencionam, de memória contada, os dias antes da construção do caminho-de-ferro. As hortas e os jardins que se estendiam em direcção à água, sem nada que separasse o quotidiano com a visão do progresso. O roseiral de Dom Martim impecavelmente protegido das geadas, com rosas de várias cores, presas por atilhos a uma armação, carnudas, espinhosas.

Mas nenhum espinho foi tão agreste como o da linha de caminho-de-ferro em construção, a atravessar terrenos a grande velocidade. Nessa altura D. Martim já estava acamado, atacado por uma pneumonia que viria a ser fatal e toda a família procurou disfarçar o tum-tum dos martelos, o tremor que abalava a casa, o som das escavadoras a roerem o jardim. Deram graças por não ter ouvido já o som metálico das rodas nos carris a colherem os pés de rosa sob a promessa de outras velocidades e contemplações.
Cada vez que passo de comboio pelo roseiral de D. Martim, tapo os ouvidos para não ouvir o eco da maquinaria a trilhar caules e apetece-me abrir a janela gritando em passagem que “as rosas estão lindas”, que “floriram mais cedo este ano!”. Apesar de gostar tanto de andar de comboio e de ir avançando a olhar o mar enquanto te escrevo um postal…

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Postal a ver um ovni no Bugio

Há dias em que o mar e o céu se fundem e o Bugio parece planar no horizonte. As embarcações iludem o olhar movimentando-se nessa ausência de limite como se fosse possivel flutuar e não desaparecer para lá da curvatura da terra.
Calculo que em dias como este os antigos tenham ficado baralhados e, contas feitas a eixos e ângulos, tenham continuado indicifráveis os segredos da neblina a fender qualquer certeza.
No Bugio suspenso sobre o Tejo, espero ver assumar à torre central aqueles que apenas se mostram nestes dias. O reflexo tremeluzente do sol na água dissolve a nitidez da imagem nas goticulas polvilhadas ao longe. Uma sombra movimenta-se na amurada.Semi-cerro os olhos na velocidade do comboio para conseguir ver o que não é mais do que um perfil roido.
Olho os meus companheiros de viagem na esperança de perceber se veem o mesmo que eu, mas a rapariga que arranja as unhas e se fixa na lima em vai e vem alheia-se na cadencia do kuduro que se ouve através dos head-phones.
Um pouco adiante, a nuca grisalha de um velho não se desvia do jornal de distribuição gratuita aberto em frente. Há quem dormite, quem fale ao telemóvel. E o Bugio vai ficando para trás à medida que o grande pinheiro se aproxima, e debaixo dele se encontram as duas vizinhas que todas as manhãs trazem os cães a passear no baldio. Quando a voz gravada anuncia a paragem seguinte e a carruagem é atravessada por uma ligeira agitação, estava capaz de jurar que pelo canto do olho tinha visto o Bugio levantar voo em direcção a Sul...

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Postal de Reis

Do alto de um 4º andar, o Menino-Jesus abana os pés ao vento. Não consegue desviar os olhos de um outro Menino-Jesus, amarelo e descorado, certamente atacado de icterícia, que desbota a cada dia que passa na fraca qualidade do fabrico, três janelas abaixo.
De pezinhos pequenos impressos em nylon, este encolhe uma bênção envergonhada enquanto olha intrigado um terceiro Menino-Jesus, redondo e reluzente, que vive na varanda do prédio em frente, adornado por um turbilhão de fitas doiradas. Recorda-se de o ver no porão do mesmo avião que o trouxe, numa outra pilha de pacotes, expedido de uma outra fábrica directamente para este condomínio de estábulos aéreos. Ele bem que teria gostado de ter nascido naquela fábrica dos meninos anafados e perfeitos e não tanto naquela que o produziu mirrado.
Também não se teria importado de nascer em pano azul, como alguns dos Meninos-Jesus do Porto. Uma vez amarelo, também poderia ter nascido na manjedoura de palha impressa, do Menino-Jesus que habita no bairro adiante. O Menino-Mirrado acena aos quatro Pais Natal que trepam uma escada um pouco mais acima e pensa que a inveja é um pecado feio, enquanto sonha com a fatia de Bolo-Rei que está a ser comida, no interior da casa de quem o expôs.