sexta-feira, 8 de abril de 2011

Postal a dançar no céu

Ninguém percebeu ao certo como tudo aconteceu. O barulho foi estridente, de metal contra metal, como o silvo de um foguete ou giz sobre ardósia. Mas ampliado várias vezes. Mesmo o Roberto lá no alto se mostrou surpreendido. Até porque, até aquela hora, nada naquela manhã decorrera fora do habitual. Levantou-se como sempre fazia com o despertador a tocar às dez para as seis e o galo de um quintal próximo a acompanhar, de forma intermitente. Era noite escura e lá fora uma ou outra luz a quebrava a monotonia da paisagem. Nos rituais de higiene matutina sentiu a água fria activar-lhe os músculos da cara e afeitou a barba, como se talhasse um pedaço de madeira. Sempre tivera aquela compleição seca que lhe reforçava as maças do rosto, a boca larga, as orelhas salientes, que lhe tinha valido em criança a alcunha de Pinóquio.



Acabou de acordar à medida que se aproximava da cidade, de camioneta primeiro, de barco depois, viu o reflexo do sol despontar nas poças do molhe junto ao cais, já em Lisboa. Além do saco onde trazia o termos com as sobras do jantar, um papo-seco com marmelada e um cantil com água, carregava todas as segundas e quartas, uma mochila às costas. Hoje parecia-lhe particularmente pesada, mercê das sapatilhas quase novas compradas por anúncio de jornal em Almada. Cerca de 40 euros e um couro de meter inveja. Embalado, tinha comprado também o respectivo kit de polimento e graxa. Não via a hora de as calçar e deslizar pelo soalho como se tivesse asas nos pés.


Enquanto pendurava o casaco no prego improvisado de cabide projectou mentalmente o momento em que, findo o do dia, despiria o cansaço arrumando os Jeans e a camisa de quadrados no cacifo. Sentar-se-ia nos bancos de madeira corrida para vestir o fato de licra preta como se envergasse calças e casaca. Estava tão concentrado a apertar os atacadores e a experimentar o som das chapinhas com parafusos de solda que nem deu pela entrada dos outros operários no recinto vedado das obras. Enquanto se foram cumprimentando e distribuindo pelos postos de trabalho, tacteou o chão em pequenos soluços a fazer vibrar o metal.
Apertou os botões de punho à medida que arregaçava as mangas à camisa, esticou o peito e começou a subir a longa escada sentindo fluir o ritmo da música em ascensão. Sacudiu as abas de grilo do fraque, como um toureiro agita a capa em desafio ao touro. Olhou de soslaio para baixo na esperança de ver surgir atrás de si Adélia do café Ginja do Tejo, vestida de cerimónia, a esvoaçar na grande saia branca emplumada pelo vento, tal qual a actriz loira dos filmes de sapateado. A melodia envolveu-os e estavam já distantes da terra, suspensos na bolha de vidro da cabine de comando. Sedutor, sorrindo sempre com muitos dentes, guiou-lhe os passos pelas nuvens

Heaven, I'm in heaven,

And my heart beats so that I can hardly speak

And I seem to find the happiness I seek

When we're out together dancing, cheek to cheek

E no exacto momento em que se preparava para fazer Adélia deslizar de costas sobre o seu braço, beijando-lhe ardente o rosto com o olhar e a respiração quente, foi acordado em alvoroço com o degagé da enorme grua sobre a cidade, entrando pela marquise de alumínio do prédio em frente, como se esperasse ser erguida em aplauso pelas gaivotas ali antes poisadas. Detenho-me maravilhada com o acontecido e avanço apressadamente para os correios para não perder a abertura. Consigo enviar-te este postal a tempo, com a cara vermelha do “Roberto manobrador” na ponta da caneta e o olhar incrédulo, de colegas e transeuntes, espalhado no papel e na memória. Enquanto espero a minha vez cruzo os dedos e faço figas na expectativa de ver surgir no placard luminoso dos talões: “Roberto Astaire e Ginger Grua: 10 pontos”!