quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Um postal de lata na mão

Se eu tivesse uma lata de spray, saía pela linha a grafitar. Escondia-me à passagem dos comboios, em busca da melhor parede e esgalhava palavras em letras grandes para vermos bem, como se fossemos míopes e não tivéssemos óculos a condizer. Não deixava que me apanhassem, de tanto que corria entre murais e, se conseguisse, na gincana das superfícies livres, ainda pintava uma carruagem a dizer “já nada é como nunca foi”, mas apenas na parte debaixo das janelas, porque gostava que os passageiros vissem a paisagem entrecortada com o dizer.

Nas paredes de betão inclinadas sobre os carris, equilibrava-me oblíqua como na garupa de um ginete e escrevia “¡A galopar, a galopar, hasta enterrarlos en el mar!” Para que as palavras e o rio ao fundo, passassem velozes e o comboio em movimento fizesse deles, um só, em contínuo. Gostava de ter uma lata de spray, para poder desenhar caras a ver-nos passar de quando em vez. Franzia o sobrolho a uma, riscava um sorriso noutra, esticava-lhes muito as orelhas como se tentassem ouvir as nossas conversas ao passar.


Chamava dois ou três amigos para nos rirmos a cada desenho e avançarmos ao despique à medida que preenchêssemos os intervalos da visão com frases ouvidas em qualquer lado.

Nas escadas do bairro podia lançar que ” Se houvesse degraus na terra e tivesse anéis o céu, eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia” para depois acelerar passo pelo baldio, antes que dessem conta da malfeitoria. Podia mais adiante escrever-te um postal de parede, a contrastar com os de papel, que poderias ler com um telescópio. Desenhava-lhe um selo imaginado com um spray fininho e agitava a lata linha fora, como se te acenasse em despedida.