terça-feira, 10 de agosto de 2010

Postal a ouvir uma conversa

Hoje está muito calor apesar de serem nove horas da manhã e tentamos todos proteger-nos na sombra irregular de um velho plátano. Ela chega à paragem do autocarro com o saco da ginástica na mão, uns óculos escuros a reproduzir os Gucci last season no rosto. Calculo que tenha próximo de sessenta anos com o cabelo curto a pintar de dourado a traiçoeira passagem do tempo.
Destaca-se, dos que comigo esperam, pela camisola rosa brilhante com que molda o corpo cheio, numa densidade voluptuosa que todos os dias atrai o Sr. Marques ao Jardim. Sobe a rua para comprar o jornal no quiosque e seguir os trilhos dos pombos até ver surgir, no areão branco, os passos dela.

Aproxima-se da paragem e mete conversa.

- Então D. Estrela, continua a fazer a sua dieta?
- Continuo Sr. Marques. Mas agora, estou a fazê-la melhor.
- Melhor?
- Sim. Agora só como alfaces.
- Alfaces...
- Sim. É só alfaces.
- Isso não me parece muito bem....

D. Estrela crava-lhe os olhos.
O Sr. Marques apercebe-se que o tom pouco reconhecido gerou incómodo.

-...devia comer fruta, acrescenta.
- E como. Como alfaces e fruta!
- A minha neta só come peros...
- Também levo aqui um.

D. Estrela ajeita a gola que se engelha a cada frase.

O Sr. Marques segue-lhe atentamente o gesto.

- Não dê salada de frutas à sua neta, diz ela.
- Eu não dou.
- No outro dia disse que lhe tinha feito uma...
- Fiz. Mas ela não comeu.
- Fez ela bem.

Com a mão esticada D. Estrela alisa a camisola.

O Sr. Marques segue-lhe atentamente no gesto.

- Digo isto por causa da mistura das frutas. Algumas fazem inchar..., enfatiza ela arrastando as palavras.
- Ela não quis comer. Pegou num pero, sem descascar nem nada, lavou-o e comeu-o
- Já faço isso ha tanto tempo...

O olhar dela a procurar o transporte que não chega,

os olhos dele no decote,

sorriso como se não soubesse,

sorriso a procurar disfarçar...




- D. Estrela ponha a sua mala ali no banco para não estar tão carregada.
- Não posso, está ao sol. E levo aqui um iogurte....pode-se estragar.

Segura com as duas mãos a alça do saco enquanto acrescenta

- e uma sandes....


Silencio, enquanto baloiça corpo e mala de tras para a frente a marcar os minutos.

- Agora, só como alfaces, fruta, iogurtes e sandes... dispara de soslaio a deter o ondear hipnótico.
E às vezes uns sonhos..

Os olhos de D. Estrela abrem-se por detrás dos óculos escuros, morde o lábio inferior a saborear a ideia, o baton prende-se no canino.
O Sr. Marques engole em seco. O estomago ruge... Na folha de rosto do jornal apenas consegue ver a boca suja de açucar de D. Estrela enquanto o autocarro se afasta da paragem quase vazia.


2 comentários: