quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Último postal do ano

Não quero a Crise à minha mesa, não conheço essa senhora, não é minha amiga e não a quero tornar familiar. Estou cansada que me falem dela com carinho, que me adocem o seu perfil, para que me habitue à sua presença e se me anestesie a reacção. Há anos. Desde que me lembro de mim. De quando em vez, lá vem ela, lá paira ela, lá se lembram dela, lá fazem por ela. “Isto é que vai uma crise!”, cantarolava o Camilo de Oliveira à Ivone Silva há muitos anos atrás. Como se fosse um encosto, um fantasma, uma assombração, um adesivo pegajoso colado aos dedos, um caramelo fora do prazo preso aos dentes. Recuso-me a fazer aquelas bolachinhas das revistas, em forma de árvore de natal, feitos em casa mas iguais a todos, para oferecer a nas festas. Não quero procurar receitas sem ingredientes para me orgulhar com a minha resiliência – termo comum quando a adversidade aperta – ou, como sugeria um médico na rádio, escrever poemas com o título de cada letra da palavra CRISE para contrariar as suas características. Não admito este espasmo nos ombros que os encolhe com facilidade, como se não houvesse nada a fazer em relação a não se sabe bem o quê. Na noite de fim de ano vou abrir a porta ao que aí vem. Como tem sido sempre. Convosco. E isso, basta-me. Mesmo que uma voz longínqua diga “Aproveita bem, porque deixa que para o ano…”

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Um postal de Natal

Vi o Pai Natal no mastro de um navio.
Olhava intrigado a magra chaminé, aquele tubo esguio, sem saber como entrar ou pôr-se na gávea de pé.
A certa altura calculei que não fosse lhe estranha a embarcação, e que sentado no alto, desse uma ou outra indicação.
Não sabia que vinha por mar, o Pai Natal directamente da Lapónia e atracasse em Lisboa, para os lados de Santa Apolónia.
Não vi prendas no convés, antes três ou quatro gaivotas com ar feliz. Esticavam as penas, as saias com godés e riam-se com sonoros pis-pis-pis.

Ó Pai Natal, o que me trazes tu no porão do teu navio? Uma bota rota e um sapato? Uma vela sem pavio?
Uma rosa sem cor? Lugares-comuns para me sentar. Conversas boas, músicas que sei de cor, um boião e dentro, o mar.
Uma casa, um terraço, um jardim, peluches desbotados na varanda, um casaco em tons de jasmim e um carro que não anda.



Uma fábrica de acordeões ou uma sirene para tocar, na sacola farinha e limões para fazer bolos ao jantar.
Com o vento frio na cara, uma caminhada à beira mar a pensar que enchi de tralha o navio e fiz o Pai Natal afundar…

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Um postal raivoso

Hoje, filava-lhes as canelas!

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Um postal do Subsolo

Hoje recebi uma nota de pagamento para um Imposto de Utilização do Subsolo.

Pergunto-me que uso é este que lhe dou e que não sinto ser mais do que um trepidar de passos cá em cima, numa ressonância surda agora portajada pelo interior da terra.
Ainda que me tenham explicado o sentido desta taxa (como se fizesse sentido esta taxa), não consigo deixar de me imaginar toupeira importunada por cobradores de caterpillar.
Mas eu, que ultimamente pouco paro em casa, nada ando de metro, e de elevadores em trânsito para caves e sub-caves só esporadicamente necessito, encontro fugaz sentido em semelhante imposto apenas para quando bater botas e destroçar.



E mesmo nessa altura também só o pago ao cobrador que se apresentar a sete palmos de terra, vestido a rigor e de livrinho dos deves e haveres na mão, para tirar teimas. Mas para já, recuso-me a taxar os fossos dos castelos de areia que construo na praia, as covas abertas para o jogo dos guelas ou as pegadas que deixo quando vinco o chão caminhando em protesto.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Postal a respigar marés

O mar, é sabido, trás à praia tudo o que encontra pelo caminho. Pedras, lixo, carcaças de animais, conchas, algas, espumas, sapatos, garrafas. Hoje, que passo em comboio lento no paredão, observo um homem que atravessa a névoa das primeiras chuvas, debruçado sobre as manchas indistintas depositadas no areal. Vasculha com um pau, inclinado para conseguir ver o que as ondas trouxeram. Como um caranguejo de carapça em nylon azul escuro estica o braço a recolher um trapo rasgado. O comboio avança e o respigador de marés torna-se um ponto negro no areal.
Apetece-me sair da carruagem e ir ao seu encontro, sentar-me de longe a vê-lo desarear tesouros. Imagino que o faço. Que te dou conta das mãos sujas a revolver salvados de tantos naufrágios. O pássaro morto em voo enquanto procurava escapar ao outono, as penas de gaivota tombadas num asseio de ave a auspiciar escritas e desenhos, a sandália de plástico cor de rosa semi-enterrada, moldada a um pé inexistente, a lata de sumo vazia e amolgada, comprada numa tarde de sol para acompanhar uma sandes de mortadela, o gancho de cabelo perdido depois do beijo, quando num assomo de coragem ele a convidou a vir ver o mar, a garrafa verde de vinho, que idealizo de Rum, pertença do pirata Rackam, o Terrivel,pousada entre as rochas num passeio clandestino pelas margens do Tejo, a espuma a secar em riscos na praia. O comboio caminha terra dentro, a grande velocidade. E o mar vai ficando para trás...

sábado, 11 de setembro de 2010

Postal ao final da tarde

Tenho uma certa inveja. Sentam-se sempre os dois na varanda ao final da tarde, como se estivessem numa esplanada frente ao mar e conversam horas a fio até a noite assumar. Advinho-lhes as palavras nos sussurros que chegam até mim trazidos pelo vento, oiço-os rir enquanto a cidade se agita em baixo e eles nem veem. Não há nada mais do que o esticar de braços e o encostar das pernas ao soco do pequeno pátio suspenso como amurada de um navio, o estar ali, um com o outro, um no outro. Enquanto vou regando as plantas,


dou por mim a prender os olhos na toalha de mesa, na buganvilia florida de roxo a um canto, no cigarro que fumega no cinzeiro de loiça, no copo de vinho a ser levado aos lábios,




nos petiscos sobre a mesa, na porta da cozinha entreaberta, na meia bancada com a máquina do café em cima, no poster antigo colado na parede, nas aberturas sucessivas casa dentro a deixar correr o ar agora mais fresco, nas paredes adocicadas pela luz, nos corpos em repouso cá fora, nos dedos entrecruzados sobre a nuca, no sorriso, no rosto a ¼, no olhar luminoso que o observa, na conversa que se estende no puro gosto do dizer e escutar e que eu me entretenho a imaginar, suspensa em balões de acontecimentos numa iconografia inventada, no telefone que toca, na espera pelo fim desse semi-enredo invasor, de olhos postos nos telhados onde poisam as gaivotas, na onda involuntária que me molha os pés quando o vaso transborda arrastando-me em palavrões, no pavimento encharcado, nas pegadas de água em busca de um pano, no gato que as lambisca enquanto não as seco,


na mão que o afasta, no tecido a humedecer-se no descuido, na rua em baixo a ver se ninguém se molhou, na varanda onde sempre se sentam ao final da tarde, agora vazia, agora que o sol tombou.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Postal a ouvir uma conversa

Hoje está muito calor apesar de serem nove horas da manhã e tentamos todos proteger-nos na sombra irregular de um velho plátano. Ela chega à paragem do autocarro com o saco da ginástica na mão, uns óculos escuros a reproduzir os Gucci last season no rosto. Calculo que tenha próximo de sessenta anos com o cabelo curto a pintar de dourado a traiçoeira passagem do tempo.
Destaca-se, dos que comigo esperam, pela camisola rosa brilhante com que molda o corpo cheio, numa densidade voluptuosa que todos os dias atrai o Sr. Marques ao Jardim. Sobe a rua para comprar o jornal no quiosque e seguir os trilhos dos pombos até ver surgir, no areão branco, os passos dela.

Aproxima-se da paragem e mete conversa.

- Então D. Estrela, continua a fazer a sua dieta?
- Continuo Sr. Marques. Mas agora, estou a fazê-la melhor.
- Melhor?
- Sim. Agora só como alfaces.
- Alfaces...
- Sim. É só alfaces.
- Isso não me parece muito bem....

D. Estrela crava-lhe os olhos.
O Sr. Marques apercebe-se que o tom pouco reconhecido gerou incómodo.

-...devia comer fruta, acrescenta.
- E como. Como alfaces e fruta!
- A minha neta só come peros...
- Também levo aqui um.

D. Estrela ajeita a gola que se engelha a cada frase.

O Sr. Marques segue-lhe atentamente o gesto.

- Não dê salada de frutas à sua neta, diz ela.
- Eu não dou.
- No outro dia disse que lhe tinha feito uma...
- Fiz. Mas ela não comeu.
- Fez ela bem.

Com a mão esticada D. Estrela alisa a camisola.

O Sr. Marques segue-lhe atentamente no gesto.

- Digo isto por causa da mistura das frutas. Algumas fazem inchar..., enfatiza ela arrastando as palavras.
- Ela não quis comer. Pegou num pero, sem descascar nem nada, lavou-o e comeu-o
- Já faço isso ha tanto tempo...

O olhar dela a procurar o transporte que não chega,

os olhos dele no decote,

sorriso como se não soubesse,

sorriso a procurar disfarçar...




- D. Estrela ponha a sua mala ali no banco para não estar tão carregada.
- Não posso, está ao sol. E levo aqui um iogurte....pode-se estragar.

Segura com as duas mãos a alça do saco enquanto acrescenta

- e uma sandes....


Silencio, enquanto baloiça corpo e mala de tras para a frente a marcar os minutos.

- Agora, só como alfaces, fruta, iogurtes e sandes... dispara de soslaio a deter o ondear hipnótico.
E às vezes uns sonhos..

Os olhos de D. Estrela abrem-se por detrás dos óculos escuros, morde o lábio inferior a saborear a ideia, o baton prende-se no canino.
O Sr. Marques engole em seco. O estomago ruge... Na folha de rosto do jornal apenas consegue ver a boca suja de açucar de D. Estrela enquanto o autocarro se afasta da paragem quase vazia.


terça-feira, 20 de julho de 2010

Um postal ao balcão

Ajeito-me entre as Empadas e os Palmiers e procuro na mala a caneta para te escrever. É cedo e a pastelaria está às moscas. O Sr. João trouxe-me entretanto o carioca que lhe pedi. À medida que se aproxima a hora do autocarro, surgem mais clientes. Gosto quando se detêm frente à montra dos bolos e lhes vejo os olhos, e neles o pensamento, as calorias, as cáries, o colesterol, a dieta, a gula, o horário do dia com a pausa para comer, o saquinho de papel manchado de gordura, o Bolo de Arroz, o Rim ou o Jesuita, comprados nesta manhã em que te escrevo, a desaparecerem, boca fora, já longe do meu olhar. Enquanto espera o embrulho para levar, a senhora velha pede um garoto, o carteiro uma bica, um homem de calças de ganga pintada um café. Não é um cafézinho como o da D. Olga, tomado em sorvo aflito a enganar o quente no passo apressado pela preocupação de levar o neto ao infantário. Nem tão pouco um café quase cheio que faz parecer a cafeina um inimigo menor. É um café café, ainda que a piscar o olho a um cheirinho para aguentar a dureza do dia nas obras de reconstrução do prédio ao lado.





Ha quem se aproxime e peça um descafeinado, quem goste de uma chicara ou da chavena escaldada aninhada nos dedos a activar a circulação. Alguns pagam o totoloto entre golos e galões. Outros, hesitam entre abatanados e meias de leite a ouvir ao longe o autocarro em esforço a subir a rua. Ha quem tenha ainda tempo para uma italiana, um café duplo, um duplo escaldado, um pingado, com açucar, sem acuçar, com frutose, com pauzinhos de canela.

Há quem pague e quem deixe ficar as moedas sobre o balcão, quem pague mais logo, quem ponha na conta, quem se esqueça, quem desapareça porta fora. Pego no postal, despeço-me e corro para não perder o transporte.

sábado, 19 de junho de 2010

Um postal entre dentes

De todos os feitios, as falésias, as ravinas e as ondas do sul de Portugal procuram seduzir os turistas. Há-as para todos os gostos e o postal em forma de trevo de quatro folhas augura boa sorte.
Quem olha para tudo muito desconfiada é a velha desdentada que na loja assiste ao esgotar do stock. No seu tempo não existia silicone e os fatos de banho bem cobertos não permitiam excessos. A fotografia de casamento, exposta num canto da loja, entre fatos de banho e sandálias, atesta a sua seriedade e estas modernices quase fazem corar a noiva e os convidados.

Mas quando os visitantes regressam aos hotéis e a noite cai sobre a falésia, é possível ver-se ao longe, correndo pelo areal, uma mulher nua que para trás deixou apenas a dentadura…

Um postal de inverno

Quis só mandar-te um abraço, hoje que tive um dia de cão. Tive aulas miseráveis em presença de uma colega que acha. Acha sempre qualquer coisa sobre tudo e eu acho que estou farta dela achar tanto e ser tão pouco.

Choveu a potes e eu esqueci-me do guarda-chuva. Cheguei ao emprego como uma esponja, encharquei o soalho encerado e chamaram-me a atenção por isso. O computador engasgou-se e fez desaparecer um texto inteiro. Perdi o autocarro, o outro passou em cima de uma poça e molhou a velha atrás de mim que vociferou “devo estar toda negra!”. O negro atrás dela riu mostrando uns dentes muito brancos e eu ri-me também quando um relâmpago rebentou por detrás do Carmo. Porra! Morro de medo de trovoadas…

Cheguei a casa cansada de me arreliar com tudo, é que ele há dias assim, e no final… olha apeteceu-me mandar-te um abraço, hoje, que tive um dia de cão.