quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Postal a pisar rosas

Um dos barcos é dos pombos. Distingue-se dos outros pela cor verde-água e pelos tripulantes de duas asas que olham sobranceiros o mar. Juntam-se de tarde para ouvir as conversas dos homens que se sentam entre os destroços das barcaças a jogar cartas ou dominó, a lembrar viagens que nunca fizeram.

São sobretudo pescadores amadores, reformados, gente que mora pelas redondezas e se senta ali a olhar o horizonte, a tecer, entre redes de nylon desusadas, contornos de histórias. Falam de futebol, das desavenças do dia-a-dia, da vida no bairro. Por vezes mencionam, de memória contada, os dias antes da construção do caminho-de-ferro. As hortas e os jardins que se estendiam em direcção à água, sem nada que separasse o quotidiano com a visão do progresso. O roseiral de Dom Martim impecavelmente protegido das geadas, com rosas de várias cores, presas por atilhos a uma armação, carnudas, espinhosas.

Mas nenhum espinho foi tão agreste como o da linha de caminho-de-ferro em construção, a atravessar terrenos a grande velocidade. Nessa altura D. Martim já estava acamado, atacado por uma pneumonia que viria a ser fatal e toda a família procurou disfarçar o tum-tum dos martelos, o tremor que abalava a casa, o som das escavadoras a roerem o jardim. Deram graças por não ter ouvido já o som metálico das rodas nos carris a colherem os pés de rosa sob a promessa de outras velocidades e contemplações.
Cada vez que passo de comboio pelo roseiral de D. Martim, tapo os ouvidos para não ouvir o eco da maquinaria a trilhar caules e apetece-me abrir a janela gritando em passagem que “as rosas estão lindas”, que “floriram mais cedo este ano!”. Apesar de gostar tanto de andar de comboio e de ir avançando a olhar o mar enquanto te escrevo um postal…

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