Não quero a Crise à minha mesa, não conheço essa senhora, não é minha amiga e não a quero tornar familiar. Estou cansada que me falem dela com carinho, que me adocem o seu perfil, para que me habitue à sua presença e se me anestesie a reacção. Há anos. Desde que me lembro de mim. De quando em vez, lá vem ela, lá paira ela, lá se lembram dela, lá fazem por ela. “Isto é que vai uma crise!”, cantarolava o Camilo de Oliveira à Ivone Silva há muitos anos atrás. Como se fosse um encosto, um fantasma, uma assombração, um adesivo pegajoso colado aos dedos, um caramelo fora do prazo preso aos dentes. Recuso-me a fazer aquelas bolachinhas das revistas, em forma de árvore de natal, feitos em casa mas iguais a todos, para oferecer a nas festas. Não quero procurar receitas sem ingredientes para me orgulhar com a minha resiliência – termo comum quando a adversidade aperta – ou, como sugeria um médico na rádio, escrever poemas com o título de cada letra da palavra CRISE para contrariar as suas características. Não admito este espasmo nos ombros que os encolhe com facilidade, como se não houvesse nada a fazer em relação a não se sabe bem o quê. Na noite de fim de ano vou abrir a porta ao que aí vem. Como tem sido sempre. Convosco. E isso, basta-me. Mesmo que uma voz longínqua diga “Aproveita bem, porque deixa que para o ano…”

Uma rosa sem cor? Lugares-comuns para me sentar. Conversas boas, músicas que sei de cor, um boião e dentro, o mar.




dou por mim a prender os olhos na toalha de mesa, na buganvilia florida de roxo a um canto, no cigarro que fumega no cinzeiro de loiça, no copo de vinho a ser levado aos lábios,


D. Estrela ajeita a gola que se engelha a cada frase.

À medida que se aproxima a hora do autocarro, surgem mais clientes. Gosto quando se detêm frente à montra dos bolos e lhes vejo os olhos, e neles o pensamento, as calorias, as cáries, o colesterol, a dieta, a gula, o horário do dia com a pausa para comer, o saquinho de papel manchado de gordura, o Bolo de Arroz, o Rim ou o Jesuita, comprados nesta manhã em que te escrevo, a desaparecerem, boca fora, já longe do meu olhar. Enquanto espera o embrulho para levar, a senhora velha pede um garoto, o carteiro uma bica, um homem de calças de ganga pintada um café. Não é um cafézinho como o da D. Olga, tomado em sorvo aflito a enganar o quente no passo apressado pela preocupação de levar o neto ao infantário. Nem tão pouco um café quase cheio que faz parecer a cafeina um inimigo menor. É um café café, ainda que a piscar o olho a um cheirinho para aguentar a dureza do dia nas obras de reconstrução do prédio ao lado.





