quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Postal quando o comboio passa

Sempre que o comboio passa, assomam à janela. Creio que são os únicos habitantes da casa que se encontra parcialmente em ruinas. À porta alguém fez uma vedação com tapumes e caixotes para não deixar mais ninguém entrar. Modelo da arquitectura de princípios do século XX, a casa tem um recorte fino que os dias e a falta de uso foram esmiuçando em abandono. E é no mirante avançado, de janelas vazadas em arcos de ferradura, que os três sempre aparecem a ver-nos passar. Fazem-me lembrar as Triplettes de Belleville, três que são, ainda que não ladrem ao ronco do comboio em avanço.


Um é preto, esguio, com ar de patriarca, focinho esbranquiçado e olhar vigilante. Outro é um Cocker cor de mel, de idade avançada como o pelo mal encaracolado descobre. O terceiro, mais novo, todo sarapintado a duas cores, preto e branco, como os cavalos índios dos filmes americanos, é o mais irrequieto e nem sempre o vejo aparecer.
Imagino que vivem sozinhos na grande casa como uma trupe de ocupas, espreitando caixotes do lixo, aos restos e a colher gestos espontâneos de afecto pela vizinhança. Pergunto-me porque correm sempre tanto quando o comboio passa e se apressam a exibir as três cabeças esticadas. Mas já lhes surpreendi olhares seduzidos, de quem se imagina maquinista de farda ou revisor a farejar os faltosos. Creio mesmo que o cão preto e esguio prepara todas as manhãs os caninos para picar os bilhetes de quem espera no cais. O sarapintado talvez gostasse de o enganar.
O Cocker velho, estou certa, já só pensa em viajar, sentar-se nos bancos coloridos reservados aos idosos e perder-se, em movimento, na paisagem que todos os dias vê de casa, parado à janela.



quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Um postal de lata na mão

Se eu tivesse uma lata de spray, saía pela linha a grafitar. Escondia-me à passagem dos comboios, em busca da melhor parede e esgalhava palavras em letras grandes para vermos bem, como se fossemos míopes e não tivéssemos óculos a condizer. Não deixava que me apanhassem, de tanto que corria entre murais e, se conseguisse, na gincana das superfícies livres, ainda pintava uma carruagem a dizer “já nada é como nunca foi”, mas apenas na parte debaixo das janelas, porque gostava que os passageiros vissem a paisagem entrecortada com o dizer.

Nas paredes de betão inclinadas sobre os carris, equilibrava-me oblíqua como na garupa de um ginete e escrevia “¡A galopar, a galopar, hasta enterrarlos en el mar!” Para que as palavras e o rio ao fundo, passassem velozes e o comboio em movimento fizesse deles, um só, em contínuo. Gostava de ter uma lata de spray, para poder desenhar caras a ver-nos passar de quando em vez. Franzia o sobrolho a uma, riscava um sorriso noutra, esticava-lhes muito as orelhas como se tentassem ouvir as nossas conversas ao passar.


Chamava dois ou três amigos para nos rirmos a cada desenho e avançarmos ao despique à medida que preenchêssemos os intervalos da visão com frases ouvidas em qualquer lado.

Nas escadas do bairro podia lançar que ” Se houvesse degraus na terra e tivesse anéis o céu, eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia” para depois acelerar passo pelo baldio, antes que dessem conta da malfeitoria. Podia mais adiante escrever-te um postal de parede, a contrastar com os de papel, que poderias ler com um telescópio. Desenhava-lhe um selo imaginado com um spray fininho e agitava a lata linha fora, como se te acenasse em despedida.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Postal em passo de corrida

Hoje já havia banhistas junto aos pneus que o Verão ainda não retirou da praia e escaldam ambos ao sol, nos refegos da sua compleição, espalhados pelo areal.
Os meus olhos fixam-se nas três senhoras de ar antigo, fatos de banho coloridos e enormes chapéus de palha que avançam em passo decidido junto à borda da água. Riem muito na cumplicidade embalada pelo fresco da manhã que aviva as memórias e a língua afiada na crítica do quotidiano. Vejo-as todas as manhãs, ora na praia, ora no paredão, com o passo marchado recomendado pelos médicos da televisão. Sempre que encontram as guardas metálicas de protecção contra qualquer queda para as rochas em baixo, detêm-se todas juntas, de costas para a linha de comboio, e só lhes vejo os chapéus de abas largas e meio troco comprimido pelos anos, a avançar e recuar em flexões esforçadas como se fossem cabos na recruta.

O exercício sai meio torto, mas o que conta é a intenção, já deixaram o sonho de ser ginastas há muito. Uma delas chegou a ser federada mas o casamento trocou-lhe as voltas. Agora viúva e os filhos já criados é craque do varão e incita as amigas ao exercício, reinventando enunciados da juventude.
Retiro da mochila o chapéu de pano florido e alinho a corrida de aquecimento, antes de me juntar às minhas companheiras de manutenção. Saúdam-me festivas ao verem-me chegar. Na bolsa exterior ficou o postal que te escrevi. Espero não me esquecer de o pôr no correio quando regressar a casa.


sexta-feira, 8 de abril de 2011

Postal a dançar no céu

Ninguém percebeu ao certo como tudo aconteceu. O barulho foi estridente, de metal contra metal, como o silvo de um foguete ou giz sobre ardósia. Mas ampliado várias vezes. Mesmo o Roberto lá no alto se mostrou surpreendido. Até porque, até aquela hora, nada naquela manhã decorrera fora do habitual. Levantou-se como sempre fazia com o despertador a tocar às dez para as seis e o galo de um quintal próximo a acompanhar, de forma intermitente. Era noite escura e lá fora uma ou outra luz a quebrava a monotonia da paisagem. Nos rituais de higiene matutina sentiu a água fria activar-lhe os músculos da cara e afeitou a barba, como se talhasse um pedaço de madeira. Sempre tivera aquela compleição seca que lhe reforçava as maças do rosto, a boca larga, as orelhas salientes, que lhe tinha valido em criança a alcunha de Pinóquio.



Acabou de acordar à medida que se aproximava da cidade, de camioneta primeiro, de barco depois, viu o reflexo do sol despontar nas poças do molhe junto ao cais, já em Lisboa. Além do saco onde trazia o termos com as sobras do jantar, um papo-seco com marmelada e um cantil com água, carregava todas as segundas e quartas, uma mochila às costas. Hoje parecia-lhe particularmente pesada, mercê das sapatilhas quase novas compradas por anúncio de jornal em Almada. Cerca de 40 euros e um couro de meter inveja. Embalado, tinha comprado também o respectivo kit de polimento e graxa. Não via a hora de as calçar e deslizar pelo soalho como se tivesse asas nos pés.


Enquanto pendurava o casaco no prego improvisado de cabide projectou mentalmente o momento em que, findo o do dia, despiria o cansaço arrumando os Jeans e a camisa de quadrados no cacifo. Sentar-se-ia nos bancos de madeira corrida para vestir o fato de licra preta como se envergasse calças e casaca. Estava tão concentrado a apertar os atacadores e a experimentar o som das chapinhas com parafusos de solda que nem deu pela entrada dos outros operários no recinto vedado das obras. Enquanto se foram cumprimentando e distribuindo pelos postos de trabalho, tacteou o chão em pequenos soluços a fazer vibrar o metal.
Apertou os botões de punho à medida que arregaçava as mangas à camisa, esticou o peito e começou a subir a longa escada sentindo fluir o ritmo da música em ascensão. Sacudiu as abas de grilo do fraque, como um toureiro agita a capa em desafio ao touro. Olhou de soslaio para baixo na esperança de ver surgir atrás de si Adélia do café Ginja do Tejo, vestida de cerimónia, a esvoaçar na grande saia branca emplumada pelo vento, tal qual a actriz loira dos filmes de sapateado. A melodia envolveu-os e estavam já distantes da terra, suspensos na bolha de vidro da cabine de comando. Sedutor, sorrindo sempre com muitos dentes, guiou-lhe os passos pelas nuvens

Heaven, I'm in heaven,

And my heart beats so that I can hardly speak

And I seem to find the happiness I seek

When we're out together dancing, cheek to cheek

E no exacto momento em que se preparava para fazer Adélia deslizar de costas sobre o seu braço, beijando-lhe ardente o rosto com o olhar e a respiração quente, foi acordado em alvoroço com o degagé da enorme grua sobre a cidade, entrando pela marquise de alumínio do prédio em frente, como se esperasse ser erguida em aplauso pelas gaivotas ali antes poisadas. Detenho-me maravilhada com o acontecido e avanço apressadamente para os correios para não perder a abertura. Consigo enviar-te este postal a tempo, com a cara vermelha do “Roberto manobrador” na ponta da caneta e o olhar incrédulo, de colegas e transeuntes, espalhado no papel e na memória. Enquanto espero a minha vez cruzo os dedos e faço figas na expectativa de ver surgir no placard luminoso dos talões: “Roberto Astaire e Ginger Grua: 10 pontos”!


quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Postal a pisar rosas

Um dos barcos é dos pombos. Distingue-se dos outros pela cor verde-água e pelos tripulantes de duas asas que olham sobranceiros o mar. Juntam-se de tarde para ouvir as conversas dos homens que se sentam entre os destroços das barcaças a jogar cartas ou dominó, a lembrar viagens que nunca fizeram.

São sobretudo pescadores amadores, reformados, gente que mora pelas redondezas e se senta ali a olhar o horizonte, a tecer, entre redes de nylon desusadas, contornos de histórias. Falam de futebol, das desavenças do dia-a-dia, da vida no bairro. Por vezes mencionam, de memória contada, os dias antes da construção do caminho-de-ferro. As hortas e os jardins que se estendiam em direcção à água, sem nada que separasse o quotidiano com a visão do progresso. O roseiral de Dom Martim impecavelmente protegido das geadas, com rosas de várias cores, presas por atilhos a uma armação, carnudas, espinhosas.

Mas nenhum espinho foi tão agreste como o da linha de caminho-de-ferro em construção, a atravessar terrenos a grande velocidade. Nessa altura D. Martim já estava acamado, atacado por uma pneumonia que viria a ser fatal e toda a família procurou disfarçar o tum-tum dos martelos, o tremor que abalava a casa, o som das escavadoras a roerem o jardim. Deram graças por não ter ouvido já o som metálico das rodas nos carris a colherem os pés de rosa sob a promessa de outras velocidades e contemplações.
Cada vez que passo de comboio pelo roseiral de D. Martim, tapo os ouvidos para não ouvir o eco da maquinaria a trilhar caules e apetece-me abrir a janela gritando em passagem que “as rosas estão lindas”, que “floriram mais cedo este ano!”. Apesar de gostar tanto de andar de comboio e de ir avançando a olhar o mar enquanto te escrevo um postal…

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Postal a ver um ovni no Bugio

Há dias em que o mar e o céu se fundem e o Bugio parece planar no horizonte. As embarcações iludem o olhar movimentando-se nessa ausência de limite como se fosse possivel flutuar e não desaparecer para lá da curvatura da terra.
Calculo que em dias como este os antigos tenham ficado baralhados e, contas feitas a eixos e ângulos, tenham continuado indicifráveis os segredos da neblina a fender qualquer certeza.
No Bugio suspenso sobre o Tejo, espero ver assumar à torre central aqueles que apenas se mostram nestes dias. O reflexo tremeluzente do sol na água dissolve a nitidez da imagem nas goticulas polvilhadas ao longe. Uma sombra movimenta-se na amurada.Semi-cerro os olhos na velocidade do comboio para conseguir ver o que não é mais do que um perfil roido.
Olho os meus companheiros de viagem na esperança de perceber se veem o mesmo que eu, mas a rapariga que arranja as unhas e se fixa na lima em vai e vem alheia-se na cadencia do kuduro que se ouve através dos head-phones.
Um pouco adiante, a nuca grisalha de um velho não se desvia do jornal de distribuição gratuita aberto em frente. Há quem dormite, quem fale ao telemóvel. E o Bugio vai ficando para trás à medida que o grande pinheiro se aproxima, e debaixo dele se encontram as duas vizinhas que todas as manhãs trazem os cães a passear no baldio. Quando a voz gravada anuncia a paragem seguinte e a carruagem é atravessada por uma ligeira agitação, estava capaz de jurar que pelo canto do olho tinha visto o Bugio levantar voo em direcção a Sul...

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Postal de Reis

Do alto de um 4º andar, o Menino-Jesus abana os pés ao vento. Não consegue desviar os olhos de um outro Menino-Jesus, amarelo e descorado, certamente atacado de icterícia, que desbota a cada dia que passa na fraca qualidade do fabrico, três janelas abaixo.
De pezinhos pequenos impressos em nylon, este encolhe uma bênção envergonhada enquanto olha intrigado um terceiro Menino-Jesus, redondo e reluzente, que vive na varanda do prédio em frente, adornado por um turbilhão de fitas doiradas. Recorda-se de o ver no porão do mesmo avião que o trouxe, numa outra pilha de pacotes, expedido de uma outra fábrica directamente para este condomínio de estábulos aéreos. Ele bem que teria gostado de ter nascido naquela fábrica dos meninos anafados e perfeitos e não tanto naquela que o produziu mirrado.
Também não se teria importado de nascer em pano azul, como alguns dos Meninos-Jesus do Porto. Uma vez amarelo, também poderia ter nascido na manjedoura de palha impressa, do Menino-Jesus que habita no bairro adiante. O Menino-Mirrado acena aos quatro Pais Natal que trepam uma escada um pouco mais acima e pensa que a inveja é um pecado feio, enquanto sonha com a fatia de Bolo-Rei que está a ser comida, no interior da casa de quem o expôs.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Último postal do ano

Não quero a Crise à minha mesa, não conheço essa senhora, não é minha amiga e não a quero tornar familiar. Estou cansada que me falem dela com carinho, que me adocem o seu perfil, para que me habitue à sua presença e se me anestesie a reacção. Há anos. Desde que me lembro de mim. De quando em vez, lá vem ela, lá paira ela, lá se lembram dela, lá fazem por ela. “Isto é que vai uma crise!”, cantarolava o Camilo de Oliveira à Ivone Silva há muitos anos atrás. Como se fosse um encosto, um fantasma, uma assombração, um adesivo pegajoso colado aos dedos, um caramelo fora do prazo preso aos dentes. Recuso-me a fazer aquelas bolachinhas das revistas, em forma de árvore de natal, feitos em casa mas iguais a todos, para oferecer a nas festas. Não quero procurar receitas sem ingredientes para me orgulhar com a minha resiliência – termo comum quando a adversidade aperta – ou, como sugeria um médico na rádio, escrever poemas com o título de cada letra da palavra CRISE para contrariar as suas características. Não admito este espasmo nos ombros que os encolhe com facilidade, como se não houvesse nada a fazer em relação a não se sabe bem o quê. Na noite de fim de ano vou abrir a porta ao que aí vem. Como tem sido sempre. Convosco. E isso, basta-me. Mesmo que uma voz longínqua diga “Aproveita bem, porque deixa que para o ano…”

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Um postal de Natal

Vi o Pai Natal no mastro de um navio.
Olhava intrigado a magra chaminé, aquele tubo esguio, sem saber como entrar ou pôr-se na gávea de pé.
A certa altura calculei que não fosse lhe estranha a embarcação, e que sentado no alto, desse uma ou outra indicação.
Não sabia que vinha por mar, o Pai Natal directamente da Lapónia e atracasse em Lisboa, para os lados de Santa Apolónia.
Não vi prendas no convés, antes três ou quatro gaivotas com ar feliz. Esticavam as penas, as saias com godés e riam-se com sonoros pis-pis-pis.

Ó Pai Natal, o que me trazes tu no porão do teu navio? Uma bota rota e um sapato? Uma vela sem pavio?
Uma rosa sem cor? Lugares-comuns para me sentar. Conversas boas, músicas que sei de cor, um boião e dentro, o mar.
Uma casa, um terraço, um jardim, peluches desbotados na varanda, um casaco em tons de jasmim e um carro que não anda.



Uma fábrica de acordeões ou uma sirene para tocar, na sacola farinha e limões para fazer bolos ao jantar.
Com o vento frio na cara, uma caminhada à beira mar a pensar que enchi de tralha o navio e fiz o Pai Natal afundar…

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Um postal raivoso

Hoje, filava-lhes as canelas!

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Um postal do Subsolo

Hoje recebi uma nota de pagamento para um Imposto de Utilização do Subsolo.

Pergunto-me que uso é este que lhe dou e que não sinto ser mais do que um trepidar de passos cá em cima, numa ressonância surda agora portajada pelo interior da terra.
Ainda que me tenham explicado o sentido desta taxa (como se fizesse sentido esta taxa), não consigo deixar de me imaginar toupeira importunada por cobradores de caterpillar.
Mas eu, que ultimamente pouco paro em casa, nada ando de metro, e de elevadores em trânsito para caves e sub-caves só esporadicamente necessito, encontro fugaz sentido em semelhante imposto apenas para quando bater botas e destroçar.



E mesmo nessa altura também só o pago ao cobrador que se apresentar a sete palmos de terra, vestido a rigor e de livrinho dos deves e haveres na mão, para tirar teimas. Mas para já, recuso-me a taxar os fossos dos castelos de areia que construo na praia, as covas abertas para o jogo dos guelas ou as pegadas que deixo quando vinco o chão caminhando em protesto.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Postal a respigar marés

O mar, é sabido, trás à praia tudo o que encontra pelo caminho. Pedras, lixo, carcaças de animais, conchas, algas, espumas, sapatos, garrafas. Hoje, que passo em comboio lento no paredão, observo um homem que atravessa a névoa das primeiras chuvas, debruçado sobre as manchas indistintas depositadas no areal. Vasculha com um pau, inclinado para conseguir ver o que as ondas trouxeram. Como um caranguejo de carapça em nylon azul escuro estica o braço a recolher um trapo rasgado. O comboio avança e o respigador de marés torna-se um ponto negro no areal.
Apetece-me sair da carruagem e ir ao seu encontro, sentar-me de longe a vê-lo desarear tesouros. Imagino que o faço. Que te dou conta das mãos sujas a revolver salvados de tantos naufrágios. O pássaro morto em voo enquanto procurava escapar ao outono, as penas de gaivota tombadas num asseio de ave a auspiciar escritas e desenhos, a sandália de plástico cor de rosa semi-enterrada, moldada a um pé inexistente, a lata de sumo vazia e amolgada, comprada numa tarde de sol para acompanhar uma sandes de mortadela, o gancho de cabelo perdido depois do beijo, quando num assomo de coragem ele a convidou a vir ver o mar, a garrafa verde de vinho, que idealizo de Rum, pertença do pirata Rackam, o Terrivel,pousada entre as rochas num passeio clandestino pelas margens do Tejo, a espuma a secar em riscos na praia. O comboio caminha terra dentro, a grande velocidade. E o mar vai ficando para trás...

sábado, 11 de setembro de 2010

Postal ao final da tarde

Tenho uma certa inveja. Sentam-se sempre os dois na varanda ao final da tarde, como se estivessem numa esplanada frente ao mar e conversam horas a fio até a noite assumar. Advinho-lhes as palavras nos sussurros que chegam até mim trazidos pelo vento, oiço-os rir enquanto a cidade se agita em baixo e eles nem veem. Não há nada mais do que o esticar de braços e o encostar das pernas ao soco do pequeno pátio suspenso como amurada de um navio, o estar ali, um com o outro, um no outro. Enquanto vou regando as plantas,


dou por mim a prender os olhos na toalha de mesa, na buganvilia florida de roxo a um canto, no cigarro que fumega no cinzeiro de loiça, no copo de vinho a ser levado aos lábios,




nos petiscos sobre a mesa, na porta da cozinha entreaberta, na meia bancada com a máquina do café em cima, no poster antigo colado na parede, nas aberturas sucessivas casa dentro a deixar correr o ar agora mais fresco, nas paredes adocicadas pela luz, nos corpos em repouso cá fora, nos dedos entrecruzados sobre a nuca, no sorriso, no rosto a ¼, no olhar luminoso que o observa, na conversa que se estende no puro gosto do dizer e escutar e que eu me entretenho a imaginar, suspensa em balões de acontecimentos numa iconografia inventada, no telefone que toca, na espera pelo fim desse semi-enredo invasor, de olhos postos nos telhados onde poisam as gaivotas, na onda involuntária que me molha os pés quando o vaso transborda arrastando-me em palavrões, no pavimento encharcado, nas pegadas de água em busca de um pano, no gato que as lambisca enquanto não as seco,


na mão que o afasta, no tecido a humedecer-se no descuido, na rua em baixo a ver se ninguém se molhou, na varanda onde sempre se sentam ao final da tarde, agora vazia, agora que o sol tombou.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Postal a ouvir uma conversa

Hoje está muito calor apesar de serem nove horas da manhã e tentamos todos proteger-nos na sombra irregular de um velho plátano. Ela chega à paragem do autocarro com o saco da ginástica na mão, uns óculos escuros a reproduzir os Gucci last season no rosto. Calculo que tenha próximo de sessenta anos com o cabelo curto a pintar de dourado a traiçoeira passagem do tempo.
Destaca-se, dos que comigo esperam, pela camisola rosa brilhante com que molda o corpo cheio, numa densidade voluptuosa que todos os dias atrai o Sr. Marques ao Jardim. Sobe a rua para comprar o jornal no quiosque e seguir os trilhos dos pombos até ver surgir, no areão branco, os passos dela.

Aproxima-se da paragem e mete conversa.

- Então D. Estrela, continua a fazer a sua dieta?
- Continuo Sr. Marques. Mas agora, estou a fazê-la melhor.
- Melhor?
- Sim. Agora só como alfaces.
- Alfaces...
- Sim. É só alfaces.
- Isso não me parece muito bem....

D. Estrela crava-lhe os olhos.
O Sr. Marques apercebe-se que o tom pouco reconhecido gerou incómodo.

-...devia comer fruta, acrescenta.
- E como. Como alfaces e fruta!
- A minha neta só come peros...
- Também levo aqui um.

D. Estrela ajeita a gola que se engelha a cada frase.

O Sr. Marques segue-lhe atentamente o gesto.

- Não dê salada de frutas à sua neta, diz ela.
- Eu não dou.
- No outro dia disse que lhe tinha feito uma...
- Fiz. Mas ela não comeu.
- Fez ela bem.

Com a mão esticada D. Estrela alisa a camisola.

O Sr. Marques segue-lhe atentamente no gesto.

- Digo isto por causa da mistura das frutas. Algumas fazem inchar..., enfatiza ela arrastando as palavras.
- Ela não quis comer. Pegou num pero, sem descascar nem nada, lavou-o e comeu-o
- Já faço isso ha tanto tempo...

O olhar dela a procurar o transporte que não chega,

os olhos dele no decote,

sorriso como se não soubesse,

sorriso a procurar disfarçar...




- D. Estrela ponha a sua mala ali no banco para não estar tão carregada.
- Não posso, está ao sol. E levo aqui um iogurte....pode-se estragar.

Segura com as duas mãos a alça do saco enquanto acrescenta

- e uma sandes....


Silencio, enquanto baloiça corpo e mala de tras para a frente a marcar os minutos.

- Agora, só como alfaces, fruta, iogurtes e sandes... dispara de soslaio a deter o ondear hipnótico.
E às vezes uns sonhos..

Os olhos de D. Estrela abrem-se por detrás dos óculos escuros, morde o lábio inferior a saborear a ideia, o baton prende-se no canino.
O Sr. Marques engole em seco. O estomago ruge... Na folha de rosto do jornal apenas consegue ver a boca suja de açucar de D. Estrela enquanto o autocarro se afasta da paragem quase vazia.


terça-feira, 20 de julho de 2010

Um postal ao balcão

Ajeito-me entre as Empadas e os Palmiers e procuro na mala a caneta para te escrever. É cedo e a pastelaria está às moscas. O Sr. João trouxe-me entretanto o carioca que lhe pedi. À medida que se aproxima a hora do autocarro, surgem mais clientes. Gosto quando se detêm frente à montra dos bolos e lhes vejo os olhos, e neles o pensamento, as calorias, as cáries, o colesterol, a dieta, a gula, o horário do dia com a pausa para comer, o saquinho de papel manchado de gordura, o Bolo de Arroz, o Rim ou o Jesuita, comprados nesta manhã em que te escrevo, a desaparecerem, boca fora, já longe do meu olhar. Enquanto espera o embrulho para levar, a senhora velha pede um garoto, o carteiro uma bica, um homem de calças de ganga pintada um café. Não é um cafézinho como o da D. Olga, tomado em sorvo aflito a enganar o quente no passo apressado pela preocupação de levar o neto ao infantário. Nem tão pouco um café quase cheio que faz parecer a cafeina um inimigo menor. É um café café, ainda que a piscar o olho a um cheirinho para aguentar a dureza do dia nas obras de reconstrução do prédio ao lado.





Ha quem se aproxime e peça um descafeinado, quem goste de uma chicara ou da chavena escaldada aninhada nos dedos a activar a circulação. Alguns pagam o totoloto entre golos e galões. Outros, hesitam entre abatanados e meias de leite a ouvir ao longe o autocarro em esforço a subir a rua. Ha quem tenha ainda tempo para uma italiana, um café duplo, um duplo escaldado, um pingado, com açucar, sem acuçar, com frutose, com pauzinhos de canela.

Há quem pague e quem deixe ficar as moedas sobre o balcão, quem pague mais logo, quem ponha na conta, quem se esqueça, quem desapareça porta fora. Pego no postal, despeço-me e corro para não perder o transporte.